Carlos Fuentes


TERRA NOSTRA ( Jornal Zero Hora - Porto Alegre)



Escritor produziu mural da vida mexicana

Carlos Fuentes levou o quixotismo a sério, por meio de ações pautadas pelo compromisso

político, ético e social

No início desta semana, recebemos, atônitos, a notícia de uma grande perda para a literatura. Aos 83 anos, Carlos Fuentes faleceu devido a problemas cardíacos, conforme informou a família, no Hospital Ángeles de Pedregal, na Cidade do México. De certa forma, já preparara uma aclaração. Em entrevista a Cristián Warnken, sobre sua própria morte e a finitude do ser humano, disse: “Sou mexicano. No México, não se distingue a vida da morte. Tudo é vida. E a morte é parte da vida”.

Carlos Fuentes, um dos mais importantes intelectuais do México, nasceu no Panamá em 1928. Filho de diplomatas mexicanos, em diversos momentos de sua vida, residiu em diferentes países. Devido a essas mudanças, o português tornou-se o primeiro idioma aprendido e empregado ainda criança, entre os dois e quatro anos de idade, período em que a família estabeleceu-se em terras brasileiras. Da paixão pela língua portuguesa, mais tarde, brotou a leitura atenta, sobretudo, de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond, Cecília Meireles e dos irmãos Campos.

O deslocamento e alargamento das fronteiras não foi um fato alheio a outros escritores: Alejo Carpentier, filho de um arquiteto francês e uma violinista russa, nasceu na Suíça, mas não apenas adotou a nacionalidade cubana, como transbordou em sua obra o fascínio pela história da América, transformando-a em “uma crônica do real maravilhoso”. Cortázar, filho de argentinos, viveu boa parte de sua vida na França, nasceu em Bruxelas, mas plasmou em diversas narrativas as idiossincrasias portenhas. A correspondência desses fatores, ou seja, a intersecção dessas experiências, fortaleceu as literaturas de língua espanhola da qual Fuentes participa.

As preocupações de Fuentes em boa medida se engendraram em torno da discussão sobre a identidade nacional ou o caráter próprio da gênese mexicana, do mestiço e as relações com os demais países, principalmente no que diz respeito aos Estados Unidos. Na revista Tiempo Mexicano, afirmou: “Aquilo que um escritor pode fazer politicamente deve fazê-lo também como cidadão. Em um país como o nosso, o escritor, o intelectual, não pode ser indiferente à luta pela transformação política que, em último caso, pressupõe também uma transformação cultural”. Para Fuentes, na América construiu-se uma grande cultura indo-afro-ibero-americana, que deve ser celebrada e preservada em busca de uma continuidade cultural, apesar da fragmentação política causada pelos fracassos econômicos.

Seu modo de pensar não ficou preso ao papel: ao assumir o cargo de embaixador do México na França, em 1975, abrigou exilados da resistência espanhola e refugiados políticos latino-americanos. Demitiu-se em protesto à nomeação, como primeiro embaixador do México na Espanha após a morte de Franco, de Gustavo Díaz Ordaz, responsável pelo “Massacre de Tlatelolco”, no qual o exército executou, em 1968, centenas de estudantes. O eco dessas manifestações e revoltas foi tema de reflexão do livro Em 68, Paris, Praga, México, de Fuentes, anos mais tarde.

Nos últimos anos de vida, dividia-se entre México, Espanha e Londres. Autodenominava-se um “trabalhador matutino”: escrevia pela manhã (sempre à mão), lia durante a tarde e encontrava os amigos à noite. Para ele, muitos escritores promissores sucumbiram devido à comodidade: “o nome cotidiano da criação é a disciplina”, o que implica trabalhar todos os dias. Desse empenho, edificou uma obra monumental, catalogada e subdividida pelo autor com o título de “A idade do tempo”, que abarca, entre outros, Terra Nostra, Os Cinco Sóis de México, Este é meu Credo, A Morte de Artemio Cruz, Cristóvão Nonato. Em conjunto, suas narrativas compõem, como o autor explicou à crítica Bella Jozef, “uma espécie de mural da vida mexicana”, cujo ponto de partida é uma obsessão particular, para oferecer uma perspectiva própria entre os escritores de sua geração.

Compartilhou com García Márquez a paixão pelo cinema. A parceria na elaboração de roteiros só teve fim porque a dupla preocupava-se mais com vírgulas e adjetivos que propriamente com o roteiro. Na Feira do Livro de Paris, em 2009, Fuentes explicou: “Passávamos todo o tempo discutindo, não sobre cinema, mas sim sobre literatura. O cinema é outra arte, é visual, popular, imediato; enquanto a literatura transforma a linguagem em imaginação”. Seu legado fílmico inclui por volta de 25 títulos com seu nome, quer seja como roteirista, ator, diretor ou autor, entre eles, figura o clássico Gringo Velho, protagonizado por Gregory Peck e Jane Fonda, com base em romance homônimo do escritor.

Fuentes leu Dom Quixote quando tinha apenas 12 anos, e dois anos depois ganhou seu primeiro concurso literário com um capítulo ilustrado das aventuras do “Cavaleiro da Triste Figura”. A partir desse momento, Dom Quixote se tornaria uma de suas obsessões: lia a obra todos os anos, porque, segundo ele, caso não o fizesse, não conseguiria viver, pensar ou respirar. De acordo com Fuentes, em entrevista concedida à Efe, Dom Quixote é paradigmático porque “Cervantes lhe permite saber o que você não pode fazer como escritor, porque ele já o fez melhor, mas também lhe dá pistas do que você pode fazer, porque ele abriu o caminho”. De fato, Fuentes dizia que faltava quixotismo na vida, não para sair enfrentando gigantes imaginários, mas pela permanente lição de Dom Quixote acerca do que a humanidade pode fazer para alcançar novas metas, para mudar o mundo, para não estar satisfeita com o que lhe é oferecido, para pôr em dúvida a realidade pré-fabricada.

Em contrapartida, pensava em um leitor do futuro, um leitor ainda não nascido, que descobriria sua obra dentro de 50 anos. Acreditava que não apenas os leitores poderiam completar o livro, acrescentando seus sentimentos e experiências à obra, como poderiam também dar uma segunda oportunidade ao texto. Ele próprio era leitor e amigo de escritores. Quando Cortázar faleceu, ligou para García Márquez para perguntar-lhe se havia lido a notícia sobre a morte do grande cronópio. E escutou a seguinte resposta: “Carlos, não acredite em tudo que se lê nos jornais”. Portanto, duvidemos dessa separação. Carlos Fuentes, que levou o quixotismo a sério por meio de ações pautadas pelo compromisso político, ético e social, segue vivo nas páginas de nossas leituras.

DEPOIMENTOS
Gabriel García Márquez (1986)

“Não acredito que exista um escritor mais atento aos demais escritores que surgiram depois dele, nem algum que seja tão generoso [...]. Fuentes deseja celebrar diariamente uma festa para que todos os dias surjam, cada vez mais, jovens escritores no mundo. Tenho a impressão de que ele sonha com um planeta ideal habitado em sua totalidade por escritores, e apenas por eles. Às vezes, frustro seu entusiasmo ao dizer que esse lugar já existe: é o inferno. ”
Mario Vargas Llosa (1967)

“Ele fala de um modo que contagia. Quando conta sobre o que está escrevendo, ou algo que acaba de ler, ou o que fará amanhã, parece que ganhou na loteria. Há pouco tempo ouvi alguém dizer perversamente que atacar Carlos Fuentes havia se transformado em um esporte nacional mexicano. ”
POR JANAÍNA DE AZEVEDO BALADÃO e RUBEN DANIEL CASTIGLIONI

Comentários

anazul disse…
Era profesor honoris causa de nuestra facultad en Vigo. Cuando vino a recoger su premio, un discurso precioso y emotivo, cantó con nosotros y se hizo fotos con la alegría de un novato escritor admirado por unos cuantos profesores universitarios. Su sencillez me enamoró.