Sentença surrealista


Sentença surrealista… Surrealista (?!)

(Publicado originalmente no Caderno de Literatura da AJURIS – Associação dos Juízes do RS)

Em artigos de jornal, petições e até sentenças, é comum encontrarmos frases com a palavra surrealista. Usada como adjetivo, ela substitui, muitas vezes, palavras como irracionalabsurdoloucoalucinadoincompreensívelinsensato; isto é, freqüentemente aparece denominando algo insano, surge como um termo depreciativo de alguma coisa ou de algum fato.
Vejamos alguns exemplos:
“… é indispensável acrescentar que o caso concentra surrealismo e insensatez em elevadas doses. A sentença condenou o Ministério Público Federal a …” (1)
“Entrar no gabinete de um ministro do Supremo Tribunal Federal é quase como presenciar uma cena surreal". (2)
Ou neste outro:
“E é aqui que vira um surrealismo só. R. entrou com um processo. [...] Muitas loucuras e absurdos chamam atenção nesta sentença, mas o trecho mais …” (3)

Seguem apenas mais dois exemplos da imensa quantidade disponível:
“O que se vê na casuística, pois, a demonstrar o surrealismo paradoxal inicialmente referido, é que, além da questão da sentença ser ultra petita, é … surrealista!” (4)
“Decidir em sintonia com a verdade real, seria o mesmo que encontrar numa sentença a seguinte frase surreal: ´isto posto, apesar da prova dos autos indicar que o réu é culpado, sabendo o que eu sei e não está nos autos, absolvo-o´ ”. (5)
As frases estão erradas? O que é o surrealismo e o que quer dizer que algo é surrealista? Ao procurar os dois verbetes no Novo Aurélio Século XXI encontramos a definição de surrealista como relativo ao surrealismo e surrealismo como uma escola de literatura e arte iniciada pelo escritor francês André Breton em 1924.
Aprofundando um pouco mais, descobrimos que os pesquisadores do surrealismo alertam sobre a desinformação e confusão acerca do que foi o movimento e do que significam essas denominações. Frisam que é muito mais do que uma escola estética ou um movimento de vanguarda artística porque não se define a partir de considerações técnicas, temáticas, estéticas, artísticas, sendo, isso sim, um movimento com posições ideológicas, um estilo de pensar, um método de vida, uma concepção de mundo, uma ideologia, um estado de espírito com expressões artísticas (na pintura, na poesía no cinema, etc), ou não.
Esse estado de espírito é definido como uma tentativa de busca dos  valores essenciais e permanentes do ser humano, uma procura de valores tendo a liberdade como foco, e o amor e a poesia como meio. Então, salvo se considerarmos esses postulados como absurdos, insanos ou irracionais, parece inadequado usar as palavras surrealista esurrealismo da maneira como vêm sendo usadas, inclusive com relação a temas na área do Direito.
O surrealismo espalhou-se pela Europa, América e Ásia e teve personagens famosos: Luis Buñuel, Salvador Dalí, Joan Miró, Max Ernst, René Magritte, Marcel Duchamps, Óscar Domínguez, e até Pablo Picasso foi considerado surrealista.
Os surrealistas norte-americanos definem o surrealismo da seguinte maneira:
“… é demasiado anarquista para a maioria dos marxistas, muito marxista para os anarquistas; extremamente amante da poesía e da pintura para os políticos, por demais desejoso de revolução para os escritores e artistas; muito inclinado às pesquisas teóricas para os ativistas, demasiado indisciplinado para os professores….” (6)
Então, o surrealismo é isso e mais do que isso, é ele mesmo, mas tem sido  confundido com suas manifestações artísticas que, desde o início, chocaram o mundo. (7)
A palavra surrealista passou a ser usada de uma maneira indiscriminada e equivocada, algo similar ao que ocorreu com a palavra kafkiano.
Mas afinal, o que quer dizer exatamente que algo é kafkiano? (8)
www.conjur.com.br/static/txt/65790
2 www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/valdocruz/ult4120u3601959.shtml
manelenatela.blogspot.com/2007/09/surrealismo-isso.html
4 www.tjap.gov.br/ejap/magistrado/des_cassiano-surrealismo_processual.doc 
 5 “Papel do juiz A verdade formal e a real têm relacionamento harmônico” RevistaConsultor Jurídico, 5 de junho de 2008.
¿qué hay de nuevo, viejo? Textos y declaraciones de Movimiento Surrealista de los Estados Unidos (1967-1999). Logroño: Pepitas de la calabaza Ed., 2008, p.21 (trad. nossa)
7 Para mais informações sobre o surrealismo ver de PONGE, Robert, O surrealismo. Porto Alegre: UFRGS, 1991. Do mesmo autor, Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
8 Ver ainda: VICENTE MOLINA FOX. Todos somos surrealistas. Tiempo de Hoy, 01/08/2008.

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